sábado, fevereiro 25, 2006

O sonho...


Acordou zangado. Os raios de sol que irrompiam pela janela aqueciam a cara, mas não a alma. A noite, demasiado longa, apagara aquele assalto de inegável felicidade como se de uma tempestade em dia de Verão se tratasse. Pensava em como a beleza alheia podia ser estranhamente incómoda, não pelo seu significado em si, mas sim pelo peso que acarretava. Sentia que a desigualdade seria sempre um fardo com o qual teria de lidar, o quão pequenino se parecia sentir perante tamanhas demonstrações de excelência e graciosidade. Adormecera cor-de-rosa, mas acordara cinzento. Os acessos de realismo exacerbado tinham este condão, o de cortar sem piedade aqueles pequenos momentos de plenitude, de harmonia, de felicidade…ou talvez ilusão… Sentia-se impotente. Incapaz de chegar ao topo, mais uma vez. Convencera-se a si próprio por momentos que saíra da mediocridade e conquistara a dignidade de igualar em estatuto a beleza, mas em vão. Era linda...ou apenas sonho?

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A intempérie


Puxou o gorro um pouco mais para baixo e enfrentou de frente a intempérie. Lembrou-se que há muito que não sentia um frio assim, embora a questão pouco o incomodasse. Durante a noite sonhara em abundância, mas só os pesadelos vinham à memória. Haviam-lhe roubado o carro, mas recuperara-o, bem como todo o resto da sua dignidade no momento em que abrira, a custo, os olhos. Sentia-se preguiçoso, mas isso já não era novidade. Desde há uns dias que o pacifismo havia ido, e o retorno à languidez e à reflexão funcionavam como que uma couraça que não permitia a estranhos irromper no seu pequeno mundo. Pensava em como estes dias, felizmente pouco frequentes, podiam alterar a imagem de simpatia e sociabilidade que procurava cultivar, mas na realidade deixara de se ralar, a partir do momento em que havia aceite por fim a sua individualidade. Preocupava-se com os outros, era um facto, mas só aqueles que realmente importavam valiam uma mudança de comportamento, uma cara alegre em dia de tempestade. Afinal vivia rodeado de rejeições, e a ingratidão era defeito que desprezava. Finalmente chegou. Tirou o gorro mas não o semblante carregado. O sorriso teria mesmo que esperar…

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Thanks!

Um obrigado especial aos verdadeiros amigos e miguinhas por se terem lembrado do dia dos namorados. Não, e não falo propriamente do S. Valentim. Vocês sabem....

Prazeres...


A auto-estrada estava calma, como era normal àquela hora. Entregou-se ao mais puro prazer da condução. Acordara com predisposição para aceitar o mundo, isso era evidente, daí que tudo o resto não importasse, mesmo que noutras ocasiões o mesmo se mostrasse incómodo. Nem a voz monocórdica de Abrunhosa na telefonia chateava, muito menos o cromo do camionista que seguia a velocidade pedonal. Tudo se mostrava demasiado pacífico. Estranhamente hoje não cantarolava, só um tímido balbuciar quando a viagem se aprestava ao seu término. Era um dia anormal, por isso o punha a pensar. Haveriam assim tantas razões para o equilíbrio? Era óbvio que não. Mas mais do que isso, ele finalmente aceitara-o. Integrara-o de tal maneira que dispensava parte da realidade para prosseguir o seu caminho. Havia finalmente uma forma de ultrapassar o obstáculo, que não necessariamente transpô-lo, talvez contorná-lo, que havia descoberto e que parecia resultar…

Seria possível confundir sentimentos? Havia esse risco, era inevitável, mas a alternativa de passar ao lado, ignorando toda e qualquer possibilidade de realização do sonho, mostrava-se claramente nefasta e prontamente rejeitada pela frieza que o pautava. Parou por momentos e repreendeu-se a si próprio por ser tão calculista. Era um defeito óbvio que não conseguia corrigir e isso irritava-o, mas moderadamente. Esta discreta falha da sua personalidade tinha a vantagem de esclarecer o raciocínio em situações de stress, auxiliando aquela que já era uma crónica incapacidade de decisão. Nem sempre pesar os prós e contras seria o melhor método, bem o sabia, muito menos quando estavam em causa sentimentos, mas era o melhor que conseguia fazer. Escolhia as suas opções em função da racionalidade, ignorando a (pouca) inteligência emocional que possuía, e os resultados estavam à vista. Quando tudo, tudo na sua vida se parecia basear neles, ou na sua falta… Acendeu a televisão. Estava na hora de voltar à sua realidade favorita.