quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A intempérie


Puxou o gorro um pouco mais para baixo e enfrentou de frente a intempérie. Lembrou-se que há muito que não sentia um frio assim, embora a questão pouco o incomodasse. Durante a noite sonhara em abundância, mas só os pesadelos vinham à memória. Haviam-lhe roubado o carro, mas recuperara-o, bem como todo o resto da sua dignidade no momento em que abrira, a custo, os olhos. Sentia-se preguiçoso, mas isso já não era novidade. Desde há uns dias que o pacifismo havia ido, e o retorno à languidez e à reflexão funcionavam como que uma couraça que não permitia a estranhos irromper no seu pequeno mundo. Pensava em como estes dias, felizmente pouco frequentes, podiam alterar a imagem de simpatia e sociabilidade que procurava cultivar, mas na realidade deixara de se ralar, a partir do momento em que havia aceite por fim a sua individualidade. Preocupava-se com os outros, era um facto, mas só aqueles que realmente importavam valiam uma mudança de comportamento, uma cara alegre em dia de tempestade. Afinal vivia rodeado de rejeições, e a ingratidão era defeito que desprezava. Finalmente chegou. Tirou o gorro mas não o semblante carregado. O sorriso teria mesmo que esperar…

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